E-music, ciberespaço e underground

Por Cláudio Manoel Duarte (jornalista, fundador do Pragatecno, mestre em comunicação, professor UFRB)

Os estudos culturais desenvolvidos nos anos 80 e 90, com a “descoberta da subjetividade”, abriram efetivamente espaço para aplicação desses estudos às subculturas e à cultura jovem, com destaque para os temas da subjetividade, alteridade e diferença, as análises de recepção e as configurações identitárias.
Stewart Hall estabeleceu as bases entre o marxisimo e a filosofia da linguagem: pensar a cultura significa pensar a linguagem. Discutir linguagem significa discutir também o signo. Por traz do signo há a discussão inerente sobre o processo de construçaõ do sentido: o signo é ideológico. Ele só é signo quando é lido, sob alguma ótica. Os estudos culturais se voltam aos estudos da recepção: de que forma o leitor ler o signo, que processo ideológico há no leitor que o levará a interpretar o signo (policêmico)?
Há, a nosso ver, um avanço fundamental desses estudos nesse momento, pois retira da própria linguaguem o poder de bastar em si mesma, como “expressão física da comunicação” e desloca para o receptor o domínio (quase total) de fazer essa linguagem existir. Não são mais os signos apenas; mas se esses signos são reconhecidos e de que forma. A interpretação é fundamental; mais fundamental do que a linguagem ela mesma. As alteridades, diferenças e manifestações identitárias passam a assumir um posto de destaque nos estudos culturais, pois é a partir dessas pontuações que podemos pensar de uma forma mais concreta a recepção, a linguagem, a interpretação dos signos.
Cultural studies se tornam mais interdisciplinar e pensam a comunicação sob vários aspectos, inclusive o antropológico, identificando a linguagem (e os estudos de recepção dos signos) com o comportamento de grupos identitários.
É o caso dos estudos da música popular. Foi a pesquisadora Sara Cohen em seu artigo de etinografia (1987) sobre os produtores de “young music” quem atentou para o comportamento desses jovens que produziam música pop em Liverpool (UK) durante os anos 80 – eram mais que 100 bandas pops em Merseyside. Em seguida, a antropóloga Ruth Finnegan (1989) também tem sua atenção chamada pela intensa produção cultural/artística desses jovens. Finnegan levanta 3 questões acerca do envolvimento desses jovens e sua arte: 1 – Ele se firma num corpo substancial de conhecimento e num ativo senso de escolha por parte dos músicos e público – os quais têm um claro entendimento das regras do gênero, das histórias, sem hesitação sobre fazer julgamentos do valor e significado musical. Ou seja, existe uma cultura presente na “young music” que tem bases internas, próprias, auto-referente, o que já levanta a questão de que qualquer discurso “externo”, midiático, sobre a “young music” significaria ter uma “aprovação” ou não, ser submetido a uma leitura da recepção, nesse caso especializada.
O segundo ponto levantado por Finnegan (na verdade mais defendido por Cohen) é o de que as jovens bandas de rock e músicos colocam um alto valor na “originalidade” e auto-expressão: a música significa a identidade de cada um. A nosso ver, esse segundo ponto coloca a idéia de cultura emergente, fora das mídias tradicionais, nascida fora do mainstream, quase pessoal de tão identitária e existencial. Finnegan, enfim, em sua terceira observação, afirma que a performance (a apresentação das bandas) é o ponto vital de seu trabalho, o principal ritual, onde tanto o público como os próprios músicos assumem enorme importância. É a circunstância onde acontece a verdadeira experiência da realização.
Simon Frith(1) (1991), em seu artigo “The cultural study of popular music” acrescenta que, em relação às questões de caráter mais antropológicos levantados por Ruth Finnegan e Sara Cohen, mesmo no nível mais “local”, tocar música é apenas uma parte de um conjunto de tarefas mais elaboradas e relacionamentos que envolve o mundo musical. Ela afirma: “…the simplest school or garage group becames a ´band´ by developing a support network of promoters and publicists, drivers and carriers, dedicated fans and followers.” (p.176). O que Frith talvez queira deixar claro é que em torno das bandas, monta-se toda uma estrutura organizacional onde pessoas assumem tarefas e desenvolve habilidades específicas. Isso inclui novas formas de comunicação onde os signos passam a ser mais comuns ao da cultura jovem, produzidos e interpretados para uma audiência com caráter identitário.
Isso também nos permite pensar que fazer música, para esses jovens, é uma expressão de sociabilidade e socialidade. Por um lado, os egos individuais e as “diferenças musicais” presentes numa banda fazem com que os músicos entendam que o envolvimento pessoal depende da habilidade de fazer as coisas juntas. A conexão é a música, enquanto “trabalho” ou diversão que exige “trabalho” coletivo. Por outro lado, está implícita nessas práticas uma cultura que os coloca como espelho de si mesmos. A música articula a comunidade, juntado pessoas para uma experiência (com)partilhada, estabelecendo vínculos efetivos e afetivos.
Frith, em sua conclusão, faz um retorno a Gramisch ao pensar os promoters, divulgadores, fans e seguidores como intelectuais “populares” (ou orgânicos), que reforçam e geram um processo “contra-hegemônico” de cultura, informação, linguagem, comunicação, através da música – a “young music”, ou melhor, da cena da música.
“Cena” (scene) exatamente pelo caráter amplificador além da própria expressão artística (música), envolvendo outros níveis de trabalho e informação: um “mundo” além da música, ela mesma.
Will Straw, em “Systems of articulation, logics of change: commmunities and scenes in popular music”, afirma que o senso articulado dentro de uma comunidade musical normalmente depende de um link entre dois termos: a prática musical contemporânea, de um lado, e a herança musical. Ou seja: por trás dessa conexão, há uma prática atual com informação, com background, o que reforça a idéia de que existe, nessas culturas jovens, um embasamento além-modismo e que norteia suas práticas com fundamento, estabelendo uma atuação dos envolvidos como num projeto estético, cultural, mesmo que não o seja, pois nem sempre se reivindica, nessas cenas, uma direção, nem se aponta um caminho definido.

A cena se daria a partir desse link da “prática musical contemporânea” e da “herança musical”, implicando em um movimento que tem referências anteriores mas que se adequa e assimila novas mudanças. Cena é então definida por Straw como “..is that cultural space in which a range of musical practises coexist, interacting with each other within a variety of process of differentiation, and according to widely varying trajectories of change and cross-fertilization”.
Uma das cenas que mais impressionaram no início dos anos 90 (particularmente na Inglaterra) e continua a existir é o que se chamou de cultura rave. O conceito rave, nascido no final dos anos 80 e fortalecido e advindo da produção da música eletrônica, foi formatado em festas em espaços abertos fora do perímetro urbano das cidades ou em galpões abandonados da periferia, ao som da música hipnótica tecno e de drogas como o Ecstasy (ou MDMA, XTC, E., X, Adam) e o ácido (LSD). Como idéias principais, os ravers acredita(va)m no dogma Plur (peace, love, unity and respect – paz, amor, unidade e respeito). A música, “executada” em pick ups (pratos toca-discos de vinil) por dee jays, envolvia os clubbers, ravers em danças por horas a fio, numa grande celebração tribal de alegria e êxtase.

Acontecendo fora das mídias, essa cena sempre usou suportes de divulgação independentes das mídias comerciais. Flyers, telefones móveis, sites, chats, listas de discussão na Internet eram – e são – os principais recursos de divulgação dos eventos e idéias em torno da música eletrônica, sempre baseados na alta tecnologia. A cena, portanto, é marcada pelos conceitos do underground (música experimental sem caráter comercial, formas alternativas de informação…) até que foi se tornando – as raves, as technoparties – uma possibilidade de lucro, um negócio, um empreendimento. Promoters mais comerciais entram na cena e levam-na para o mainstream, para o mercado: as raves passam a ser produto de consumo e ganham espaço em mídias tradicionais.
Há cena no ciberespaço? Há representação de cena no ciberespaço?

No ano de 1999, duas novas listas de discussão foram criadas no Brasil (já havia a BR-Rave destinada ao tecno e ao house, principalmente). Agora os integrantes da cena se segmentam em fóruns específicos de música trance e de drumNbass.

Essa arte – a música eletrônica -, gerada com base na micro-informática e outras tecnologias decorrentes ou não da micro-informática, trazem também a característica da autonomia e da centralização dos processos de produção. De posse de um pequeno aparato tecnológico, o produtor musical cria sua música (techno, house, jungle, trance etc), gera suportes (vinis, MDs, CDs, arquivos temporários em redes de computadores como ra, mp3, wav, mids etc) para a difusão de sua arte, sem a necessidade de compromissos contratuais e dependências de estruturas comerciais tradicionais.

O conjunto desta produção mundial gera também um enorme banco de dados para uma reciclagem infinita: o sample (o recorte, a amostra) é o elemento fundamental para a mixagem e a remixagem na criação de novos sons, de novas músicas. Conforme afirma Lévy (1999: 136): “A música techno colhe seu material na grande reserva de amostras (samples) de sons”.
O caráter rizomático, espaços de socialidade nas nets e a criação de instrumentos de difusão alternativa das informações garantem a permanência de conceitos autênticos de uma estética que o mainstream (atuando mais localmente, em função de um retorno financeiro mais urgente) não poderá destruir e nem mesmo acompanhar. A rapidez da transferência de informações de qualidade underground, não comercial da Cultura da Música Eletrônica (principalmente através das redes de conectividade), permite e reforça os conceitos mais “roots” (mais enraizados) de uma estética que o mercado decodifica com lentidão e sem a mesma destreza de quem integra e percorre os caminhos da cena underground.
Underground se torna overground e mostra que o conceito de underground está além da circulação.
Esses conceitos são defendidos pelas comunidades virtuais ligadas a E.music e reforçados nos suportes que incrementam essas comunidades dentro da Net (selos alternativos de vinis, cd´s, listas de discussão, sites, chat…) e fora dela (revistas especializadas, festas, lojas alternativas, pontos de encontro, bares e clubes, raves…). Nesse sentido, a Cultura da Música Eletrônica, associada sempre às tecnologias contemporâneas, não perde seu fio condutor inicial (da cena rave, da música underground) pois conta com a autonomia das tribos em relação ao mercado tradicional. Aqui tambémse aplica a idéia de Straw da prática musical contemporânea e da herança cultural musical.
Douglas Rushkoff (3) (1999) identifica os ravers (ativistas/frequentadores das raves) como aqueles que “adotam a tecnologia por sua capacidade de samplear e recombinar sons e imagens de toda a história cultural, e ainda mais pela capacidade da tecnologia de forjar uma nova cultura global”. Prática contemporânea e retomada da herança cultural.
Um dos artigos mais interessantes sobre a cena dita rave e a mídia é o de Sarah Thornton(2) (1994). Ela se volta ao surgimento da cena na Inglaterra (em fins dos anos 80 e início dos 90) e retoma essa discussão nos cultural studies, discutindo o que ela chama de “pânico moral”.
Thornton abre seu artigo criticando os estudos anteriores que sempre procuram recuperar a idéia de que “cultura” é o que está fora das mídias. Ela acha que a própria academia reforça esse equívoco quando utiliza termos que trazem um discurso anti-mídia, com chavões “comercialXhegemonia”, “produtor vendávelXincorporado”, “undergroundXsubcultura”. Thornton quer, em seu artigo, mostrar que sempre houve uma vinculação direta entre a mídia tradicional e as culturas, inclusive as populares. E que uma não sobrevive sem a outra; uma necessita da outra para se fortalecer.
A cena “acid house” (primeiro nome das festas raves na Inglaterra, por tocar principamente house music e ter a presença de drogas como o lsd) sempre sofreu uma cobertura sensacionalista dos tradicionais tablóides ingleses, que destacavam o uso de drogas. Ao atacar a cena acid house, esses tablóides publicizam cada vez mais a cena e terminava por fortalecê-la. As festas, nessa época chegam a ter um público de 8 mil a 15 mil pessoas e aconteciam nos campos da Inglaterra. Passaram a ser uma preocupação oficial a tal ponto que o governo britânico criou legislação específica que proibia festas fora da cidade com “música repetitiva”.
Thornton afirma que, se a mídia fazia discurso sensacionalista e distorcia a informação, isso por outro lado criava a necessidade da cena da acid house inventar seus instrumentos de comunicação para rebater as informações, fazendo sugir suporte alternativos de mídia, como fanzines, flyers, uso de redes de computadores. Se a cultura underground é tida como ilícita, a mídia (ao invés da polícia) é quem aprisiona, através da intrepretação (construção de sentido) para as outras camads socias. Daí a necessidade de isntrumentos de respostas. Nesse vai e vem de discursos, de construção de sentidos, é a própria cena quem ganha espaço, quem cresce e o jornalismo sensacionalista vende. Ao desaprovar moralmente as acid house parties, os tablóides mostram um pânico moral que é nada mais que a “metáfora que descreve uma sociedade moderna cheia de medos sobre suas próprias virtudes” (Thornton).
Para melhor entender essa relação de conflitos entre cultura jovem e mídia, de discursos, de construção de sentidos, Thornton pede ao pesquisador que observe: 1. de que forma o discurso jovem posiciona a mídia?; 2. como a mídia se instrumentaliza diante dessa cultura? Thornton quer alertar que na verdade a juventude se ressente mais se os mass media aprovam sua cultura: sua cultura é rebelde e não deve ser aprovada pela mídia, representante do status quo. Se a juventude tiver sua cultura rejeitada, aí sim, há radicalidade nela. Por outro lado, os estudos culturais tendem a posicionar, segundo Thornton, a cultura jovem como “inocente vítimas das versões negativas da mídia”, quando a mídia trata a cultura jovem como qualquer outro produto de mercado, vendável, enquanto notícia.
Ela cita o exemplo de como se dá o pânico moral. Enquanto a BBC londrina afirmava através de um dj entrevistado que a cena acid house nada tem a ver com drogas, o selo de vinil acid tracks descreve o som como “drug induced”, “psychedelic”. O pânico moral se dá sempre na relação entre mídia e cultura jovem, mas é, significativamente uma estrátégia eficaz de marketing. A indústria cultural, ao contrário do que se defendia, gera idéias e incita a própria subcultura. É o caso da disseminação da droga Ecstase (MDMA) que terminou amplamente sendo divulgado pela própria mídia, ao ponto da revista Melody Maker produzir um guia de uso da droga.
Thornton, na discussão sobre cultura jovem e mídia, afirma que os cultural studies exageram: vêem de forma estereotipada os produtos da indústria cultural e exageram a presença da resistência (subculturas), quando os dois sempre estiveram interdependentes historicamente. Os mass media tornam as subculturas politicamente relevantes.
O que fica, nessa trajetória dos estudos culturais em destacar a cultura jovem para suas análises (desde as abordagens iniciais) é que os estudos da comunicação humana tornaram-se definitivamente interdisciplinar e capaz de pensar, com a ajuda de novos instrumentos teóricos inclusive de outras ciências e até da arte, todas as atividades humanas como expressões resultantes da relação entre cultura e comunicação.
No Brasil, com a verticalização da cena da e-music, sobretudo em 1999 – quando as tribos se fragmentaram mais em torno das vertentes do techno/house, trance e drumNbass -, são criadas duas novas listas de discussão. Já havia a BR-Rave (http://groups.yahoo.com/group/br-raves ) destinada principalmente ao tecno e ao house. Agora os integrantes da cena se segmentam em fóruns específicos de música trance (http://members.nbci.com/psytrancebr/) e de drumNbass (http://spectrogirl.com/in2bass). Há ainda listas “regionais” como a do PragatecnoBrasil, que se volta mais à cena do norte e nordeste (http://groups.yahoo.com/group/pragatecnobrasil).
No geral, as listas confirmam a hipótese de que a formação de tribos em torno da e-music não acontece de maneira mais ampla, mas em torno dos estilos musicais (techno e house/trance/jungle e drum and bass) e de particularidades regionais: o espelho dessa segmentação aparece no próprio ciberespaço através das listas específicas, reforçando a noção de experiência (com)partilhada. Esses foruns, no entanto, não são contemplados, em sua efervescência, nos projetos de cibercidades.
Surgem fóruns de discussão, sites e listas que se baseiam em conteúdos temáticos especializados e de interesses comunitários bem definidos, muitas das vezes por associação de afinidades subculturais, de tribos, de alternativos, e, por isso, marginais aos projetos da maioria das cibercidades, marginais às proposições oficiais (institucionais) no ciberespaço.
As comunidades virtuais se estabelecem a partir da interconexão, aliada à afinidade de interesses, e processam a cooperação através da troca de informações que as consolidam enquanto grupo, independente de proximidades geográficas. Informação e sentimento estão presentes numa comunidade virtual: são a expressão da aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais e de poder, mas “sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns” (Lévy), sobre processos abertos de cooperação.
Assim, essas comunidades se firmam tendo como base processos identitários. Quanto mais radicais as expressões, menos assimiladas pelos projetos oficiais e portais com caráter comercial, que priorizam um discurso formal – e “limpo” das subculturas. Pensar sobre música eletrônica e tribos urbanas nos revela o ciberespaço como o principal “suporte” para o fluxo de informações fora do mainstream, fora da via principal. Mais que isso: o ciberespaço é uma veia livre para a formatação dos discursos subculturais de caráter rizomático, universal.
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Notas
(1) Ler o artigo “The cultural study of popular music”, in Cultura Studies. Routledge. Londres-New York (1991).
(2) Ler o artigo “Moral panic, the media and british rave culture”, in Microphone fiends. Routledge. Londres-New York (1994).
(3) Ler o livro “Um jogo chamado futuro – como a cultura dos garotos pode nos ensinar a sobreviver na era do caos”. Editora Revan. Rio de Janeior. 1999.

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