Perspectivas de abordagem sobre “autenticidade” e “originalidade” na cena de música eletrônica

Por Ricardo Augusto de Sabóia Feitosa[1]

Texto apresentado no Seminário de Ciberpesquisa da Universidade Federal da Bahia (Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – agosto/02

Resumo

O trabalho pretende analisar a questão da autenticidade na cena de música eletrônica a partir de duas óticas: como elemento recorrente na construção de um discurso relativo à originalidade e legitimidade tanto na produção e circulação musical dos gêneros da e-music; e, em uma perspectiva mais ampla, como valor essencial na constituição das relações de socialidade, lógicas de pertencimento e exclusão, analisados aqui a partir da presença dos jovens de periferia conhecidos como cybermanos na cena paulistana.

Palavras-chave: música eletrônica, autenticidade, cybermano

Subcultura e “cenas” musicais
A partir da Segunda Guerra Mundial, vê-se o surgimento de diversas manifestações culturais ligadas a uma nova condição juvenil. As formas de expressão, práticas, atitudes e comportamento diferenciados dos grupos de jovens reunidos por um estilo e interesses comuns foram caracterizados, ao longo das últimas décadas, como subculturas.
O conceito de subcultura solidificou-se ao longo das décadas de 1970 e 1980, principalmente no campo dos Estudos Culturais alinhado ao Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmingham (CCCS). Dick Hebdige (1996), na obra que se tornou referência para os estudos da área, Subculture, the meaning of style, publicado originalmente em 1979, apresenta a seguinte definição para subcultura:

Subcultures are therefore expressive forms but what they express, in the last instance, is a fundamental tension between those in power and those condemned to subordinate positions and second-class lives […] I have interpreted subculture as a form of resistance in which experienced contradictions and objections to this ruling ideology are obliquely represented in style (HEBDIGE, 1996, p. 132, 133)[2]

Os estudos de subcultura trouxeram significativas contribuições ao abordar a importância do estilo, dos significados referentes aos símbolos criados e recriados nos bens de consumo por estes jovens. As análises mais recentes, porém, têm promovido uma revisão crítica e sérios questionamentos da abordagem subculturalista.
Um dos problemas identificados é que as subculturas são geralmente posicionadas por aqueles estudos a partir de dicotomias limitadoras, como resistência-cooptação, posições hegêmonicas-posições subordinadas, em uma perspectiva que se mostra distante do cotidiano dos jovens analisados, além de pouco atentar para as relações entre estes, os movimentos que ele participam e a mídia, assim como a complexidade das práticas sócio-culturais juvenis.
O conceito de “cena” surge como forma de tentar superar as principais limitações presentes nas teorias de subcultura, enfatizando outro aspecto negligenciado naqueles estudos, a questão da localidade. Identificar as particularidades do local em relação ao global e as relações entre estes, mapear e discutir os significados das práticas culturais dessas manifestações juvenis específicas, abordar as relações destes jovens com o espaço urbano são pontos enfatizados pelos trabalhos mais recentes.
Uma das principais características dessas diversas formas de manifestações é o papel da música como um elemento central na congregação dos jovens em grupos específicos. O punk-rock, com letras de protesto e a celebração do “tosco” no processo de composição musical, é o eixo principal do movimento punk, o oi! (derivado do punk) é o estilo musical de preferência dos skinheads, o rap é um dos elementos principais da cena hip hop, os gêneros da música eletrônica na cena club e rave ou de música eletrônica em uma visão mais ampla. Coexistindo com outras no espaço urbano, uma cena musical poderia ser conceituada como:

[…] that cultural space in which a range of musical practices coexist, interacting with each other within a variety of processes of differentiation, and according to widely varying trajectories of change and cross-fertilization. The sense of purpose articulated within a musical community normally depends on a affective link between two terms: contemporary musical practices, on the one hand, and the musical heritage which is seen to render this contemporary activity, on the other (STRAW, 1991, p. 373)[3]

A construção dessas “práticas musicais contemporâneas” e do “patrimônio musical” na cena de música eletrônica implica em uma multiplicidade de questões, como a celebração do hedonismo nas pistas de dança, a crescente participação dos gêneros da e-music no mercado musical e a influência que estes exercem na produção musical contemporânea, as relações sociais presentes nos ambientes específicos de clubs noturnos e raves[4], a configuração de políticas de gênero e classe nesses espaços, entre uma série de outros aspectos dignos de análise.
Um ponto atravessa todas essas questões. É a idéia de “autenticidade”, caracterizada por significados variáveis que são determinados por práticas e contextos específicos da cena (por exemplo, quando vinculada ao processo de produção musical, a discussão do que seria “autêntico” incorre na reconfiguração dos conceitos de autoria e originalidade no trabalho de composição resultante da técnica do sampling[5], todos intimamente relacionados, porém. Neste artigo, ela é abordada sob duas perspectivas: o “autêntico” como valor recorrente na produção, criação musical e legitimação dos gêneros da música eletrônica (ou dance music, termo mais comum em outros países) e, em outro plano, como elemento essencial na constituição das relações sociais estabelecidas entre os participantes da cena, no estabelecimento de hierarquias, lógicas de pertencimento, inclusão e exclusão.

Cultura club
A idéia de “cena eletrônica” é pertinente para dar conta do significativo crescimento e influência de todo o universo cultural centrado na música eletrônica, nas festas noturnas, no trabalho dos DJs, nas publicações impressas e eletrônicas voltadas para essa cultura, sugerindo uma visão mais abrangente. Considerando que as práticas dessa cena giram em torno (ainda que não estejam restritas exclusivamente) dos espaços festivos de socialização que são os clubs noturnos e raves, além de eventos com data fixa (no Brasil, o projeto Mercado Mundo Mix ou os eventos anuais como a Parada da Paz e o festival SkolBeats), será priorizado neste artigo o que comumente se caracteriza como cultura club:

‘Club culture’ is the colloquial expression given to youth cultures for whom dance clubs and their eighties offshoot, raves, are the symbolic axis and working social hub. The sense of place afforded by these events is such that regular attenders take on the name of the spaces they frequent, becoming ‘clubbers’ and ‘ravers’ […] Club cultures are taste cultures. Club crowds generally congregate on the basis of their shared taste in music, their consumption of common media and, most importantly, their preference for people with similar tastes to themselves. Taking part in club cultures builds, in, turn, further affinities, socializing participants into a knowledge of (and frequently a belief in) the likes and dislikes, meanings and values of the culture[6] (THORNTON, 1996, p. 3)

“Cultura club” deve ser entendida, então, como uma expressão que busca englobar os “códigos (atitudes, visões de mundo e rituais de pertença) que ganham corpo com tipos específicos de roupas, ritmos musicais e ambientes”[7]. Clubber, por sua vez, transcende ao significado literal de “pessoas que freqüentam clubs” para designar uma tribo urbana[8], caracterizada em linhas gerais por adotar um visual colorido, roupas de tendência esportiva, adereços infantis, uso de tatuagens e piercings, óculos coloridos, entre outros elementos.
Originada no Reino Unido, em meados da década de 80, a partir de festas organizadas em clubes noturnos urbanos, galpões e espaços ao ar livre afastados dos centros urbanos por pessoas interessadas nos gêneros de música eletrônica que vinham se desenvolvendo desde o final dos anos 70 e início dos anos 80, a cultura club alcança outros países no início dos anos 90 (Alemanha, Estados Unidos e Brasil, por exemplo) e persiste como um das principais manifestações culturais contemporâneas, expandindo-se e incorporando novos elementos (algo que pode ser testemunhado no aumento do número de clubes noturnos e realização de raves, no crescente interesse pela música eletrônica e na presença de diversos públicos nestes espaços).
Os tópicos seguintes irão abordar os significados de “autenticidade” que circulam nessa cultura especificamente.

Autenticidade, produção musical e a legitimação dos gêneros de dance music
Walter Benjamin, no clássico ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, apresenta um conceito que se tornou referência para a classificação de uma obra como autêntica. O autor afirma que ao original associa-se uma aura, atingida quando este passa a ser reproduzido tecnicamente:

À sua mais perfeita reprodução sempre falta alguma coisa: o hic et nunc da obra de arte, a unicidade de sua presença no próprio local onde ela se encontra. Não obstante, é a esta presença única e somente a ela, que se encontra ligada toda sua história […] O hic et nunc do original constitui o que se chama de autenticidade […] O que faz com que uma coisa seja autêntica é tudo o que ela contém de originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico (BENJAMIN, 1990, p. 212 e 213)

Benjamin expõe ainda dois pontos essenciais. Reconhece que “a reprodução técnica é mais independente do original” (ibid, p. 213) e que “a técnica pode transportar a reprodução para situações nas quais o próprio original jamais poderia se encontrar” (ibid, p. 213). Quando o original passa a ser reproduzido em larga escala para as massas, ao mesmo tempo que a ele é conferido “atualidade” ao poder ser desfrutado em outras circunstâncias (ibid, p. 214), vê-se a “decadência da aura” (ibid, p. 215). Com isto, para o autor, “o critério de autenticidade não mais se aplica à produção artística” (ibid, p. 217 e 218).
Sarah Thornton (1996), por seu turno, afirma que Walter Benjamin não previu o fato da aura adquirir novas formas, sendo reposicionada e associada a novas noções de “autenticidade”[9]:

What Benjamin did not and could not foresee was the formation of new authenticities specific to recorded entertainment, for those were dependent on historical changes in the circumstances of both the production and consumption of music. Initially, records transcribed, reproduced, copied, represented, derived from and sounded like performances […] in the 1970s and 1980s, new instruments such synthesizers and samplers meant that sounds were recorded from the start. Accordingly, the record shifted from being a secondary or derivate form to a primary, original one. In the process of becoming originals, records accrued their own authenticities. Recording technologies did not, therefore, corrode or demystify ‘aura’ as much as disperse and re-locate it. Degrees of aura came to be attributed to new, exclusive and rare records[10] (THORNTON, 1996, p. 27 e 28)

A autora expõe, em sua pesquisa, como essas autenticidades nos gêneros musicais, durante parte do século XX, estavam ligadas à performance “ao vivo” (“live music”), em detrimento às gravações[11]. Em meados dos anos 70, as gravações ocupavam cada vez mais espaço nos locais destinados às atividades de lazer dos finais-de-semana, resultando no fenômeno das discothéques e da disco music. A partir disso, afirma Thornton (1996, p. 43 e 44), a reação da cultura rock, na defesa de sua concepção de autenticidade, foi apontar a expansão das discotecas e dos locais onde a música disco era executada como um processo de “morte da cultura musical” ou de difusão de “música para massas acríticas” (ibid, 1996, p. 44).
Deve-se considerar que todo processo musical implica no uso da tecnologia, ainda que se construam discursos em que algumas técnicas sejam vistas por alguns como mais autênticas do que outras:

Music has always been produced with and mediated via a number of technologies; to assume that it is only during the latter half of the twentieth century, or during the era of the microchip that technology has entered the process of music making is to misread the various histories of the musical instruments as well as those of recording and production […] Yet many discourses around music consider the presence of certain technologies in negative terms; as a marker of the elimination of human agency from the production of music, the ‘murder’ of music as living creature. Such musics, its critics argue, omit feeling, they are cold, mechanical, repetitive, lifeless. Other forms of music may be considered emotive, warm and authentic, and yet employ just as many technological components in their production. This contradiction is managed by means of the creation of a hierarchy within technology – what we might consider as an index of visibility (GILBERT e PEARSON, 1999, p. 111 e 112)[12]

A atuação dos disc-jockeys (DJs), a partir dos anos 70 e 80, ao utilizar técnicas de colagem de trechos de música, sampling e remixes, traz mais uma vez para primeiro plano discussões a respeito da autenticidade, originalidade e autoria musical. Novos gêneros musicais, como house, garage, techno, além de outros sub-gêneros, são desenvolvidos, onde é instituído uma nova lógica de criação e composição e um novo processo criativo. Como afirma Thornton, “Djs created new music in the process of mixing. Records became the raw material of DJ performance just as, with sampling, they had become the raw material of composition[13].
Na cena eletrônica, os DJs são personagens centrais, sendo vistos como “artistas” que, com o talento e a sensibilidade indispensáveis para criar uma “energia” na pista de dança, captam o espírito e desenvolvem uma relação de troca com o público. Essas características (reconhecimento do DJ como artista, “atmosfera” ou “vibe” da pista, sintonia público-DJ) são, entre outros, elementos que circulam nessa cultura relacionados a uma construção específica de identidade, autenticidade e legitimidade da cena.
Se os gêneros de dance music e seu processo de criação musical enfrentaram questionamentos se seriam autênticos quando comparados a outros estilos musicais, a cultura de música eletrônica também vai construir seus discursos referentes a critérios de autenticidade, estabelecendo seus “índices de visibilidade”. Por exemplo, discute-se sobre o uso do vinil ou do cd e mais recentemente, do computador a partir do que seria mais autêntico, verdadeiro, artístico. Alguns depoimentos extraídos de uma lista de discussão na internet (http://www.pragatecno.hpg.com.br) sobre o uso de equipamento que permite simular a manipulação física de arquivos em mp3 armazenados em um computador[14] ilustram a questão:

Pode até ser legal essa história. Mas na minha opinião o vinyl e (quem diria) o cd não vão deixar de existir tão cedo (graças a Deus).Vcs já pararam pra pensar? O que seria do dj sem o vinyl ou cd? Não concordo que facilitaria a vida do dj. Sinceramente, e com todo respeito a vc que escreveu essa mensagem, o que dá prazer em tocar é chegar no local da festa com a bag cheia de vinyl e cd… nada dessa coisa tão mecânica. Acho que o nosso trabalho como dj já é um pouco mal visto por umas poucas pessoas. Imagina chegar e colocar uma parafernália pra tocar no nosso lugar e ficarmos só olhando o pc fazer tudo? Acho que não é por aí… O vinyl e o cd estão mais vivos que nunca e o scratch não vai acabar… Simplesmente revolucionário? Pode até ser, mas tira o “tesão” da profissão. (Dj Mr V).

Alguem me responde onde fica o DJ e o vinil nesta historia? conto de fadas, Final Scratchs coisa pra dj burro dormir e ficar apertando botão e dá infarto ficar parado, coisinha tipo do mundo que dá lucro fácil. mais uma ferramenta contra o verdadeiro dj da cena. me desculpe mas fico indignado contra os que querem lucro certo e mixagem fácil, e contra o nosso saudoso e rei da cena o VINIL, ou eles querem que o dj seja mais um Zé ninquem, mané, scratch, final.. (dj sant´s).

Tocar vinil faz parte da cultura do DJ, mas isso não significa que esse fundamento não possa ser questionado. Olha, eu já toquei de cd e hoje toco com vinil. Isso foi opção minha. Sou contra djs que não tentam aprimorar sua técnica, que não pesquisam novidades para oferecer ao seu público, que roubam músicas e sets dos outros, que usam final scratch para esconder suas deficiências, que usam cds mixados que simplesmente enganam em seus estilos, que ficam teorizando demais e tocando de menos, que não contribuem para a cena da sua cidade, que ficam só falando e pouco fazem pela cena da qual se alimenta, que só se preocupam em bombar e não em educar o público (urso).

Costumo imaginar a comparação “vinil x cd” da seguinte maneira: O teatro é melhor do que o cinema? O cinema tem a alta tecnologia da edição, dos efeitos, de tantas parafernálias eletrônicas… Isso diminui o ator de cinema diante do teatral porque este interpreta de uma maneira, digamos, crua, sem o apoio dos efeitos especiais?O cara que desenha com lápis e tinta no papel é melhor, é mais artista do que aquele utiliza o computador? Creio que não. São dois meios diferentes com o mesmo fim! (Jorgito).

Percebe-se, a partir destes depoimentos, que discussões a respeito da utilização de diferentes suportes tecnológicos e julgamentos referentes ao valor artístico e ao talento de um DJ são elementos que circulam ativamente na cena eletrônica e estão associados diretamente à elaboração de critérios relativos à autenticidade.
A legitimação dos gêneros de música eletrônica/ dance music, por sua vez, também ocorre mediante a criação de discursos sobre “autêntico”. Os diferentes estilos originam-se em espaços urbanos e realidades específicas: o techno em Detroit dos anos 80, house nas comunidades gay e negra da cidade norte-americana de Chicago e o jungle/drum’n’bass[15] nas áreas mais pobres de Londres. Associam-se a práticas e públicos de determinadas áreas e, portanto, precisam ser compreendidos em suas raízes. Estes gêneros, por sua vez, tornam-se globais, apropriados no trabalho de DJs de diferentes nacionalidades, consumidos por um público que difunde práticas, comportamentos, estilos e definem espaços de lazer cada vez mais característico de uma cultura mundial. Nesse processo, identificar determinado estilo musical a um local ou à determinada comunidade significa não apenas identificar suas origens como afirmar um discurso que o reconheça como legítimo.
Atente-se para o caso do jungle/ drum’n’bass. O jungle é uma vertente da música eletrônica que surge no início dos anos 90, em áreas periféricas da East London, tendo como influências o techno de Detroit, o hardcore-break beat, o hip hop e o ragga (som jamaicano que explora o reggae e o dub, difundido na comunidade afro-caribenha britânica). Collin (1997) afirma que o gênero é associado aos jovens da comunidade negra do Reino Unido, ainda que a composição do grupo dos produtores musicais e do público fosse multirracial:

One of key narratives within what would be become the jungle scene is of black youth reasserting control over what was originally the black music of Chicago, New York and Detroit. This, again, is over-simplification; the people producing jungle were multi-racial […] the product of a generation of British black and white youth growing up together in the inner city, bonded by shared concerns and values […] But nevertheless jungle spoke to a black British identity[16] (COLLIN, 1997, p. 257, 258, 263 e 264)

No caso do techno, sua origem remonta ao trabalho dos DJs Juan Atkins, Derrick May e Kevin Saunderson em Detroit. Os três foram influenciados pelos discos do grupo europeu Kraftwerk e cunharam o termo a partir da expressão “techno-rebeldes” presente no livro A Terceira Onda, de Alvin Toffler, mas este somente se difundiu quando adotado pela imprensa inglesa em meados dos anos 80, como expõe Atkins: “O que aconteceu foi que a Virgin fez uma coletânea nessa época com artistas de Detroit. Eles iam chamá-la de o som house de Detroit. A música que eu tinha feito para essa coletânea se chamava Techno music. Aí o diretor artístico da Virgin disse ‘Peraí, vamos chamar a coletânea de o som tecno de Detroit’ porque era algo diferente do som de Chigaco, era uma coisa totalmente distinta. E foi essa decisão, muito sábia, que provavelmente deu início a coisa toda”[17].
A escolha do termo techno, como analisa Thornton (1996), relaciona-se a conferir ao gênero uma “identidade distintiva”:

The term ‘house’ was then strongly identified with Chicago and was in dangerously ubiquitous use in the UK. They decided on the name ‘techno’ because it gave the music a distinct musical identity and made it appear as something substantively new (Stuart Cosgrove: interview, 25 August 1992). Crucially, the press release validated the music by emphasizing its roots in subcultural Detroit […] the British press hailed ‘techno’ as the sound of that city (THORNTON, 1996, p. 74 e 75)[18]

Tanto o reconhecimento do jungle como uma música multirracial e ao mesmo tempo associada à cultura negra da qual ele também se origina e para qual ele “falaria” como do techno como o som underground de uma cidade industrial estão associados, assim, à necessidade de contextualizar os gêneros musicais, ao estabelecimento de referências que circulam entre os participantes (DJs, produtores, jornalistas, público), à afirmação de uma identidade musical e, para tanto, percebe-se a necessidade de elaborar e reconhecer valores e práticas que serão tomadas como autênticas na constituição da cena.

Autenticidade, pertencimento e os cybermanos
As áreas de periferia da cidade de São Paulo, as cidades da região do ABC e outras localidades da região metropolitana têm sido, nas últimas décadas, palco de importantes manifestações de “cenas musicais” juvenis. Nos anos 80, a cena punk foi uma das que mais se destacaram. Outra tribo, os “carecas de subúrbio”, também apresentou (e apresenta) destacada atuação. “Metaleiros” (fãs do gênero musical heavy metal), darks e skatistas são outros grupos que merecem ser citados.
O aparecimento dos cybermanos está ligado ao desenvolvimento de uma cena de música eletrônica no início dos anos 90 em bairros da periferia de São Paulo, principalmente na Zona Leste da cidade. O nascimento dessa cena é caracterizado pelo trabalho de alguns DJs, concursos musicais, matinês e criação de casas noturnas voltadas para uma crescente produção musical eletrônica.
Desde o início, a principal característica dessa produção musical era um estilo mais “pesado” (hardcore e techno). Algumas casas noturnas fora do circuito dos Jardins, como Overnight, Toco e principalmente a Sound Factory da Penha, no início da década de 90, voltavam-se para a música eletrônica. Também eram comuns na periferia os concursos de DJs e a realização de matinês, reunindo um público expressivo, como ilustra o seguinte depoimento:

Plisma Light em São Miguel, em 96, sabadão entupido com 2000 pessoas. Freedays véia de guerra… Splash… Citronic…
Downtown em 92, 93, 94. Dinossauros, quem lembra? 93. E claro, a saudosa Penha, onde tudo que é de maior hoje foi fruto do que começou ali… Fora as rádios piratas… Digital, Panorama… Rádio Ativa… e por aí vai. (Clebber Motta)[19]

Desenvolve-se no início da década o núcleo do que pode ser considerado como o de origem da cena de drum’n’bass na cidade, batizado de Metrô, cujas origens vão remeter, por sua vez, ao trabalho desenvolvido por artistas de hip hop da estação de metrô São Bento (cf. PALOMINO).

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